A prisão de um suspeito de atirar contra quatro pessoas em Florianópolis e a soltura dele poucas horas depois da detenção em flagrante gerou mal-estar entre o Judiciário e a Polícia Militar de Santa Catarina nesta sexta-feira. A liberdade provisória foi concedida pela juíza Erica Lourenço de Lima Ferreira, que afirmou que o jovem de 20 anos não oferece mais perigo à sociedade e que ele correria risco de vida se ficasse preso. A PM afirma que o rapaz confessou o crime, tem 14 passagens policiais (com uma condenação por tráfico de drogas) e reagiu com fortes críticas à decisão da magistrada.
O caso ocorreu na quarta-feira nos Ingleses, no Norte da Ilha, onde três homens e uma mulher foram baleados perto de um restaurante. Depois de atender a ocorrência, viaturas fizeram buscas nas redondezas e encontraram o jovem de 20 anos suspeito de atirar nos quatro. Ele foi encontrado na comunidade do Siri e disse aos policiais que foi junto a outro rapaz até o local e atirou nas vítimas. O jovem estava com uma pistola calibre 45 e sete munições intactas.
Na audiência de custódia em que definiria a necessidade da conversão de prisão em flagrante para provisória ou a liberdade provisória, a juíza Erica Lourenço de Lima Ferreira optou pela segunda opção. Na justificativa, a magistrada diz que, em relação aos tiros nos Ingleses, "(...) tudo indica que se trata de acertos de contas entre membros de facções criminosas, o que não coloca em risco a sociedade, já que é fato isolado e determinado. A prisão do conduzido pode inclusive trazer risco a sua vida".
Também foram determinadas medidas cautelares para conceder a liberdade, como o suspeito ficar em casa entre 22h e 6h nos dias úteis e não se ausentar das comarcas da região por mais de oito dias sem comunicar a Justiça. A juíza citou ainda que, pela legislação, a prisão preventiva é uma medida excepcional que só deve ser aplicada quando as medidas cautelares não forem adequadas à situação concreta — o que na avaliação da magistrada não seria o caso desta ocorrência.
Decisão de juíza não foi bem recebida por policiais
Nos bastidores, a decisão gerou reações imediatas em grupos de WhatsApp de policiais e em redes sociais. O comandante da 11ª região da PM, coronel Araújo Gomes, usou sua página no Facebook para desabafar sobre a situação.
"Ao longo das últimas semanas a Polícia Militar na Grande Florianópolis vem travando uma verdadeira guerra pela proteção da população (...) Por isso, há fatos incompreensíveis aos nossos olhos: decisões que precisam de explicação para a sociedade. (...) Um desrespeito com os policiais que arriscaram suas vidas fazendo a prisão, uma temeridade com a comunidade que o receberá mais ousado e violento e uma evidência de que decisões judiciais precisam se submeter ao processo de accountability (prestação de contas) como qualquer ação do poder público. E nós Continuamos presentes e protegendo", escreveu ao comentar o caso.
Comandante do 21º Batalhão da PM, do Norte da Ilha, o tenente-coronel Sinval Santos da Silveira Júnior também falou sobre a prisão e soltura do suspeito. Em entrevista ao DC, disse que recebeu com "estranheza" a determinação judicial.
— Tinha todos os elementos, materialidade, vítimas, confissão. Um flagrante clássico e que não foi considerado. Causa muita estranheza e um certo sentimento de indignação. As pessoas feridas não tinham passagem pela polícia, eram pessoas de bem. Se elas não fazem parte da sociedade, quem faz? — questiona.
A Associação dos Magistrados Catarinenses (AMC) se manifestou por nota, em que diz que, "considerando que o procedimento criminal mencionado encontra-se em curso, a seguir com novas etapas e comportando, inclusive, reexame da decisão prolatada, inviável qualquer pronunciamento desta Associação de Classe acerca do acerto ou desacerto do julgado".
A assessoria da presidência do Tribunal de Justiça de Santa Catarina informou que a única avaliação que faria seria a técnica e que, diante disso, só o que cabe a quem discordou da decisão é recorrer ao TJ. A juíza Erica Lourenço estava em audiências durante toda a sexta-feira e não retornou as ligações.
Legal e símbolo da crise na segurança
Juridicamente, a liberdade provisória ao suspeito de atirar contra quatro pessoas nos Ingleses, em Florianópolis, é totalmente coerente com a legislação e os procedimentos técnicos. Simbolicamente, a decisão da juíza Erica Lourenço reforça a crise do sistema prisional e da segurança pública como um todo em Santa Catarina. Essa é a avaliação do advogado criminalista e doutor em Ciência Jurídica pela Univali Alceu de Oliveira Pinto Júnior, que conversou com o DC como representante da Ordem dos Advogados do Brasil no Estado (OAB-SC).
Conforme Alceu, a magistrada foi correta ao levar em conta que a lei determina que a prisão deve ser aplicada apenas em último caso, com medidas cautelares sendo a primeira opção. Nem as 14 passagens policiais que, de acordo com a PM o jovem tem, seriam suficientes para justificar a detenção, mesmo com uma condenação por tráfico de drogas.
Por outro lado, o advogado opina que a juíza pode também ter considerado todo o contexto social para conceder a liberdade provisória. Na análise do criminalista, deve ter pesado o fato do jovem supostamente já pertencer a uma organização criminosa e à própria realidade do sistema carcerário.
— Na minha ótica, a juíza deve ter avaliado que a prisão dele poderia por exemplo acirrar os ânimos entre facções rivais. Ou, se ele ainda não tem forte ligação com algum grupo, pode vir a ter dentro da prisão. É o ideal? Não. O ideal é não ter crime. A única certeza que se tem ao prender alguém é que 70% dos detentos voltam a praticar crimes quando saem. Então essa (liberdade provisória com medidas cautelares) é uma medida possível — comenta.
Fonte: Diário Catarinense
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